domingo, julho 29, 2007

As minhas Palavras... 29 de Julho de 2007



Boa tarde a todos.

Hoje o palavras inicia um novo ciclo. Vamos viajar e percorrer a poesia de cinco continentes. Visitaremos um por semana.

Hoje...vamos andar pela Europa: França, Alemanha, Suécia, Espanha, Irlanda e Inglaterra.

Aproveitem a viagem.

Um abraço,

Susana.

Paul Éluard - Em Seu Lugar



Foto: Monica Bellucci, Autor desconhecido.



Raio de sol entre dois límpidos diamantes
E a lua a se fundir nos trigais obstinados
Uma imóvel mulher tomou lugar na terra
No calor ela se ilumina lentamente
Profundamente como um broto e como um fruto

Nele a noite floresce e o dia amadurece



Paul Éluard (Poeta Francês, 1895-1952)

Gottfried Benn - Olímpico



Foto: Heidi Klum, Autor Desconhecido.



Eleva-te da fila das que estão,
mulheres que a terra toda põem em flor,
adiantas-te, trazendo a sagração
da eleitas pró fogo em que arde o amor.

Do princípio dos povos, das idades,
presságio, cruzamento, morte – vem,
agora a forma és tu – serenidades,
esperança, sedução, trazes, mas quem

esperarás para o teu arrepio
e quem te bebe e reconhece assim
na tua eternidade em luta e cio –
esperarás o deus? – Espera por Mim!



Gottfried Benn (Poeta alemão, 1889 – 1956)

Gunnar Ekelöf - Fundi uma bala…



Foto: Love is a bullet, de A.J.



Fundi uma bala para ti
Para te atingir no meu próprio coração
É de pedra, talhada por forçados
É de chumbo, temperado no sangue
É de ferro, temperada no mel
É de minério, talhada
Em toscas mordeduras
Para mais dilacerar
Para que sintas enfim
O que quer dizer morte de amor.



Gunnar Ekelöf (Poeta e escritor sueco, 1903-1968)

Federico García Lorca - A casada infiel



Fotos: Monica Bellucci, Autor Desconhecido.



Eu que a levei ao rio,
pensando que era donzela,
porém tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Apagaram-se os lampiões
e acenderam-se os grilos.
Nas últimas esquinas
toquei seus peitos dormidos,
e se abriram prontamente
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava em meu ouvido
como uma peça de seda
rasgada por dez punhais.
Sem luz de prata em suas copas
as árvores estão crescidas,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.

Passadas as sarçamoras,
os juncos e os espinhos,
debaixo de seus cabelos
fiz uma cova sobre o limo.
Eu tirei a gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu, o cinturão com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais com lua
reluzem com esse brilho.
Suas coxas me escapavam
como peixes surpreendidos,
a metade cheias de lume,
a metade cheias de frio.
Aquela noite corri
o melhor dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Não quero dizer, por homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
eu a levei do rio.
Com o ar se batiam
as espadas dos lírios.
Portei-me como quem sou.
Como um cigano legítimo.
Dei-lhe um estojo de costura,
grande, de liso palhiço,
e não quis enamorar-me
porque tendo marido
me disse que era donzela
quando a levava ao rio.



Federico García Lorca (Poeta e dramaturgo Espanhol, 1989 – 1936)

Seamus Heaney - Despedida



Dama de blusa rendada
e saia simples de lã,
dês que deixaste a namorada
que por ela fica vã
dói pensar. Tua presença
movia o tempo, ancorado
num sorriso, mas a ausência
desmedindo o amor, deu brado
aos dias que desatinam
através do calendário
e por tua voz afinam
em flor de som terno e vário.
Irrompe a saudade e é quando
tu te foste, que ao mar vim.
Até tomares o comando,
fica-me o ser num motim.



Seamus Heaney (Poeta Irlandês, 1939- )

Philip Larkin - Deixemo-nos agora, meu amor: mas não



Foto de Bina Engel



Deixemo-nos agora, meu amor: mas não
seja amargo desastre. Houve no passado
muito luar a mais e auto-compaixão:
acabemos com isso; já como nunca é dado
agora ao sol audaz atravessar o céu
e nunca aos corações deram mais ganas
de serem livres contra mundos, florestas; eu
e tu não os detemos, nós somos as praganas
a ver o grão partir e é para outro uso.

E tem-se pena. Sempre se tem alguma.
Mas não demos às vidas laço escuso,
como barcos ao vento, de luz molhada a crista,
desferram do estuário e cada um lá ruma:
separam-se acenando e perdem-se de vista.



Plilip Larkin (Poeta Inglês, 1922-1985)

domingo, julho 22, 2007

As minhas Palavras... 22 de Julho de 2007



Este domingo continuo com as palavras que me tocam... de Natália Correia. Sintam...

- Creio nos anjos que andam pelo mundo
- O nascimento do poeta
- A defesa do poeta
- Queixa das jovens almas censuradas
- Sete Luas
- Nuvens correndo num rio.

Bom descanso e um abraço.

Susana B.

Natália Correia - Creio nos anjos que andam pelo mundo



Foto: Leve como um roçar de asa, de Elsa Mota Gomes



Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. amém.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - O nascimento do poeta





Ora foi num dia treze
que em seu bliblíco lugar de dor
minha mãe deu por completas
as letras do meu teor.

Porque para acabar o mundo
era preciso a minha mão
desse azul calafetado
caí nas facas do chão.

Machucada de nascida,
da minha sofrida região
pus-me a levantar o mapa
em ponto de exclamação.

Assim na câmara escura
de cada privada saliência
meus olhos se revelaram
negativos na ausência

Soube que o tempo é uma luva
anti-séptica que o infinito
calça para joeirar
sem contágio o nosso trigo.

Daí o amor ser o meio
do homem dividido em dois
e a pior metade é estarmos
à espera de sermos depois.

Soube que quando a amargura
nos gasta a pintura aparece
a cor que teriam os olhos
de um deus apócrifo se viesse

não refulgente ou teologal
tampouco suspensa espada
mas ocasional como vestir
uma camisa lavada

porque a vida é a ocupação
do único espaço disponível
para o possível amanhã
da nossa véspera impossível

e o sidério, adeus mistério
é um queijo de paciência
para a gulodice da terra
(e não perdi a inocência).

Soube cousas que sabê-las
foi eu ir ficando nua
como no apocalipse uma última
pedra vestida de lua

como no fim do mundo lírico
verme a recomeçá-lo
a beber estrelas e peixes
pelo seu estreito gargalo

como eu em amorosa
posição de cana erecta
a pescar no indizível
o sinónimo de poeta.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - A defesa do poeta



Foto: Autor desconhecido



Senhores jurados sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em criança que salvo
do incêndio da vossa lição

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além

Senhores três quatro cinco e Sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever
ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Queixa das almas jovens censuradas



Foto: Untitled, por Ginger



Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Sete Luas



Imagem: Seven moons passing, de Susan Seddon-Boulet



Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Nuvens correndo num rio



Nuvens correndo num rio
Quem sabe onde vão parar?
Fantasma do meu navio
Não corras, vai devagar!

Vais por caminhos de bruma
Que são caminhos de olvido.
Não queiras, ó meu navio,
Ser um navio perdido.

Sonhos içados ao vento
Querem estrelas varejar!
Velas do meu pensamento
Aonde me quereis levar?

Não corras, ó meu navio
Navega mais devagar,
Que nuvens correndo em rio,
Quem sabe onde vão parar?

Que este destino em que venho
É uma troça tão triste;
Um navio que não tenho
Num rio que não existe.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

domingo, julho 15, 2007

As minhas Palavras... 15 de Julho de 2007



Foto: Nascer do sol no Pico do Pico da Ilha do Pico, por Maria João Vera.


Na senda dos poetas açorianos encontrei a dura, crua, provocadora, Natália Correia. Apresento-vos hoje alguns dos seus poemas:

- Auto-Retrato
- Retrato talvez saudoso da menina insular
- V, da Mãe Ilha
- Nictofagia
- O sol nas noites e o luar nos dias
- Marcelo e as Tágides

Publico também três poemas do Renato Macedo. O Renato nasceu na Ilha do Pico e, depois de saber da minha viagem, teve a gentileza de me mandar três poemas sobre a sua terra:

- Pico
- Ganhoas
- Finis

Espero que gostem.

Um abraço,

Susana B.

Natália Correia - Biografia



Foto: retirada da net



Nasceu na ilha em Ponta Delgada, ilha de São Miguel em 1923 e faleceu em Lisboa em 1993. Personalidade intelectual versátil, dedicou-se a vários géneros, além de marcar a sua presença na política e na imprensa. Sua produção abrange a poesia, o romance, o teatro, o ensaio, memórias, relatos de viagem, organização de antologias e colaboração em vários jornais e revistas. Embora tenha começado pela literatura infantil (A Grande Aventura de um Pequeno Herói, 1945) e pelo romance (Anoiteceu no Bairro, 1946) foi na poesia que encontrou a expressão mais depurada de seu temperamento a um só tempo lírico e irónico, características acentuadas a partir de Dimensão Encontrada (1957) e em suas obras dramáticas. Dentro dessa linha, que a tendência surrealista da poesia portuguesa pós-1950 vem sublinhar, compôs grande parte de sua obra poética, revelando um discurso lírico insólito e singular a oscilar entre a linguagem alegórica e a voz interventora. Estão neste caso, por exemplo, Passaporte (1958), o longo poema Cântico do País Emerso (1961) e mais tarde Mátria e Maçãs de Orestes (1970). Em seu livro Poemas a Rebate, publicado em 1975, chama, na introdução, ao conjunto de seus “poemas indóceis” de “pentagrama de indignação”. Indignação constante é o que não falta á obra de Natália Correia seja motivada pela censura que a amordaçou por longo tempo, seja por uma insurreição natural a todos os engodos ideológicos da organização social. A capacidade de abranger, contudo, várias expressões líricas, bem como sentimentos e visões aparentemente opostos, entre a subjectividade romântica e a objectividade realista, levaram-na à composição, nos dois últimos anos, de Sonetos Românticos (1991, Grande prémio da Poesia APE/CTT), na poesia, e ao romance As Núpcias (1992). No primeiro, parece voltar à primeira fase de sua expressão em virtude da abstraccão do objecto lírico, não obstante, agora, mais intelectualizada, beirando certo misticismo da criação poética, da escrita, da expressão verbal. Por isso, define o soneto como “misterioso nó que em sacra escrita / cimos e abismos une”. Abismos, que enfim, de onde sempre procurou garimpar a sua “aurífera” poesia.




in Mulheres nas Letras, Mulheres dos Livros.

Natália Correia - Auto- Retrato



Foto: André Brito.



Espáduas brancas palpitantes:
asas no exílio dum corpo.
Os braços calhas cintilantes
para o comboio da alma.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra
encalhado em renúncia ou cobardia.
Por vezes fêmea. Por vezes monja.
Conforme a noite. Conforme o dia.
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia.
Aranha de ouro
presa na teia dos seus ardis.
E aos pés um coração de louça
quebrado em jogos infantis.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Retrato Talvez Saudoso da Menina Insular



Foto: André Brito



Tinha o tamanho da praia
o corpo era de areia.
E ele próprio era o início
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho nos barcos
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o seu corpo se ergueu
Voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além.
Guardada na claridade
do olhar que a retém.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Mãe Iiha




V

Nessa manhã as garças não voaram
E dos confins da luz um deus chamou.
Docemente teus cílios se fecharam
Sobre o olhar onde tudo começou.

A terra uivou. Todas as cores mudaram
O mar emudeceu. O ar parou.
Escuros véus de pranto o sol taparam
De azáleas lívidas a ilha se cercou.

A que pélago o esquife te levava?
Não ao termo. A não chorar os mortos.
Teu sumo espiritual florido ensina.

E se o mundo em ti principiava,
No teu mistério entre astros absortos,
Suavemente, ó mãe, tudo termina.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Nictofagia



Foto:AlMagnus



Se eu pudesse beber-te, ó noite,
Até encontrar o teu gosto,
Ou mordendo a ponta do açoite
Da tua treva no meu rosto,

Achasse a planície de lume
De que és uma aresta de estrelas
E sonhando sem peso e volume
Fosse um sonho de chão a tecê-las

E na praia de um trilo sem flauta,
Instrumento das harpas do fundo
Duma água escorrida da pauta
Da manhã mais antiga do mundo,

Me estendesses, ó noite florida
Das sementes que trazes no punho,
Uma adolescência impelida
Pelo arco das brisas de Junho!



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - O sol nas noites e o luar nos dias



Foto: Alex Nubocov



De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.

E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.

Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.

Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Natália Correia - Marcelo e as Tágides



A propósito das eleições municipal que decorrem hoje em Lisboa, e que parecem parar o país, como se Lisboa fosse Portugal inteiro, recordo aqui as palavras de Natália sobre um Marcelo, certa vez candidato a presidente da Câmara Municipal de Lisboa.



Marcelo, em cupidez municipal
de coroar-se com louros alfacinhas,
atira-se valoroso - ó bacanal!
- ao leito húmido das Tágides daninhas.

Para conquistar as Musas de Camões
lança a este, Marcelo, um desafio:
jogou-se ao verso o épico? Ilusões!...
Bate-o o Marcelo que se joga ao rio.

E em eleitorais estrofes destemidas,
do autárquico sonho, o nadador
diz que curara as ninfas poluídas
com o milagre do seu corpo em flor.

Outros prodígios - dizem - congemina:
ir aos bairros da lata e ali, sem medo,
dormir para os limpar da vil vérmina
e triunfal ficar cheio de pulguedo.

Por fim, rumo ao céu, novo Gusmão
de asa delta a fazer de passarola
sobrevoa Lisboa o passarão
e perde a pena que é da galinhola.



In Cancioneiro Joco-Marcelino, publicado n'O Corvo, jornal de campanha eleitoral autárquica da Coligação por Lisboa. Nov/Dez de 1989.



Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)

Renato Macedo - Pico



Foto: Pico, por F M S Botelho



Majestoso gigante adormecido,
Nas buliçosas águas flutuante,
Falo mor de ígnea pedra aos céus erguido
Do infinito no ventre penetrante.


Vagabundo nariz de mareante,
Na saga dos mistérios da noite escura
Esquadrinhando no rasto cintilante
Os ignotos caminhos da aventura.


Telúrico cetáceo mergulhante
Nos abismos da Atlântida adormecida,
Lendas de longe sorrindo a cada instante
Nas esperanças, nos sonhos da partida.


Romântico trovador embevecido,
Capa negra em noites de luar,
Às estrelas cantando ao desafio
Com o vento murmurando sobre o mar.


Etérea silhueta esculpida
Nas brumas das manhãs de primavera,
Saudade companheira duma vida
Imo altar onde minha alma Deus houvera



Renato Macedo (Poeta português)

Renato Macedo - Ganhoas



Foto: Canção de Liberdade, por Sissi



Lá vão elas, lá vão elas,
Ligeirinhas sobre o mar,
A voar, a voar.

Lá vão elas,
Saltitando onda a onda,
Brincando,
Mergulhando,
Romeirinhas do sol
Em manhãs de arrebol.

Ganhoas, ganhoas,
Tantas pedrinhas de cal,
Dançarinas do azul
Aspergido no canal!

Ganhoas, ganhoas,
Mourejando, pipilando,
Aos bandos, descansando,
Nos penedos da alagoa.

E, lá pela tardinha,
Com o sol a se esconder,
Lá vão elas a volver
Depressinha ao arraial
Nos rochedos esculpidos
Na baía do Faial.

Lá vão elas, caravelas,
Ligeirinhas sobre o mar,
A minha alma vai com elas
A voar, a voar, a voar!



P.S. No Faial chama-se “ganhoa” à gaivota. Com o significado de garça, Cândido de Figueiredo regista-o como açorianismo.


Renato Macedo (Poeta português)

Renato Macedo - Finis



Quando vier meu dia derradeiro,
Mulher, não chores nem me ponhas flores!
Faz da mortalha um fato de marinheiro,
E do caixão um barco a vapor(es).

Deita-o ao mar por entre o nevoeiro,
Sem bússola, leme e para-lhe os motores,
Deixa que as ondas façam o roteiro
E que aos baldões encalhe nos Açores.

Bela sereia, alçando pela proa,
Amarrará o barco à revelia
Com linha ao cepo a ré duma canoa

A sirene ecoará pela baía
E, ao luar, marrecas e ganhoa(s)
Me zurzirão c'o hino da alegria.



Renato Macedo (Poeta português)

domingo, julho 08, 2007

As minhas palavras... 8 de Julho de 2007





Foto: Pastagens na ilha Terceira, Açores, por Susana B.



Boa tarde, caros amigos.

Estou de regresso de umas merecidas férias. Desta vez fui aos Açores. Devo dizer, a quem não conhece, que vale a pena. Não fui a todas as ilhas, mas conheci bem a Terceira, o Pico e o Faial. Numa viagem de barco, vi ao longe a Graciosa e São Jorge. A paisagem natural, as tradições, a cultura, a gastronomia e a simpatia das gentes fazem dos Açores um local muito especial. Recomendo a todos uma visita. Recomendo especialmente a quem gosta de caminhadas. A beleza natural enriquece qualquer passeio.

Destaco como pontos altos os campos sempre verdes, as piscinas naturais, em todas as ilhas; as pastagens, o Algar do Carvão, o Monte Brasil e a Serra de Santa Bárbara, na Ilha Terceira; o Pico da Ilha do Pico; O vulcão dos Capelinhos, os campos recortados por hortênsias e a Marina da cidade da Horta, na ilha do Faial.

Em homenagem aos Açores publicarei hoje e nas próximas semanas as palavras de alguns autores açorianos. Hoje apresento-vos Antero de Quental.

Espero que gostem.

Um abraço.

Susana B.




Foto: Biscoitos na Terceira, Piscinas Naturais, por Susana B.




Foto: Pico da Ilha do Pico, por Susana B.






Antero de Quental - Biografia



Pintura: Antero de Quental, por Columbano Bordalo Pinheiro



Antero de Quental é uma figura singular e cimeira na literatura portuguesa oitocentista: por ter sido o mentor de toda a Geração de 70, pelo drama filosófico e espiritual que foi a sua vida, pelas metamorfoses e tensões por que passou a sua criação poética e porque foi o primeiro escritor que nunca dissociou a condição (e o trabalho) de poeta da reflexão estética acerca da essência e função civilizadora da poesia e da arte no contexto duma filosofia da História - abrindo deste modo um espaço de modernidade nas Letras portuguesas. Antero nasceu em 1842, em Ponta Delgada, na Ilha de S. Miguel (Açores), e nessa mesma cidade se suicidou em 11 de Setembro de 1891. Na Universidade de Coimbra (onde se formou em Direito, entre 1858 e 1864) foi o principal impulsionador dos conflitos académicos que se opunham ao conservadorismo pedagógico e cultural. Foi neste ambiente de efervescência revolucionária que desencadeou, com a célebre Carta a Castilho, de 1865, a "Questão do Bom Senso e Bom Gosto" (ou Questão Coimbrã) - polémica que opôs um novo espírito científico e europeu e uma nova poesia social, partilhados pelos jovens universitários e futuros intelectuais, à generalizada indiferença cultural e ao sentimentalismo ultra-romântico. Em 1866, exerce o ofício de tipógrafo em Paris para, assim, conhecer as condições da classe operária; mas no ano seguinte regressa desiludido. Funda, com o socialista José Fontana , a Associação Fraternidade Operária. Até 1871 torna-se o pólo dinamizador do "Cenáculo", grupo de intelectuais e amigos (entre eles Eça de Queirós , Jaime Batalha Reis , Oliveira Martins e Ramalho Ortigão ) a que se ficaram a dever as Conferências Democráticas do Casino, em 1871. Com Batalha Reis dirige em 1875 a Revista Ocidental . Todavia, a morte do pai, em 1873, a doença, o atraso cultural e o baixo nível moral do país, a influência do pessimismo filosófico (sobretudo de Schopenhauer e Hartmann) originam em Antero uma longa e dolorosa crise pessoal, metafísica e religiosa, de que a maioria dos Sonetos é a melhor expressão literária e o ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890) é a mais alta reflexão filosófica ao substituir o desespero pela consciência no processo da libertação humana. Mas a persistência da doença (de foro psíquico), a profunda crise nacional (em 1890 dá-se o Ultimato inglês) e a incompreensão familiar só reforçam o sentimento de angústia - o qual poderá explicar a morte trágica do nosso poeta-filósofo.

As suas obras principais são: Sonetos , Coimbra, 1861; Odes Modernas , Coimbra, 1865; Causas da Decadência dos Povos Peninsulares , Porto, 1871; Primaveras Românticas , Porto, 1872; Sonetos Completos , Porto, 1886; Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins , Coimbra, 1931; Prosas Sócio-Políticas , publ. e apres. por Joel Serrão, Lisboa, I.N.-C.M.,1982.

Retirado da Diciopédia 2003 - © 2002 Porto Editora, Lda.



Antero de Quental - Aspiração



Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece…
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira…

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

Antero de Quental - A sulamita



Pintura: Sleeping beauty, Michael Garmash.



Ego dormio, et cor meum vigilat.
Cântico dos Cânticos


Quem anda lá fora, pela vinha,
Na sombra do luar meio encoberto,
Subtil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou... não sei que tinha...
Pareceu-me senti-lo aqui tão perto...
Seja alta noite, seja num deserto,
Quem ama até em sonhos adivinha...

Moças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que pode ir contente e descansado,

Pois se tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhai, dormia embora,
Porque o meu coração é que não dorme...



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)



Antero de Quental - Ideal



Foto: Body coming from a dream, por Rui Gomes



Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios nem de rosas purpurinas
Não tem as formas lânguidas, divinas
Da antiga Vénus de cintura estreita...

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita...

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino...

É como uma miragem que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do Desejo...



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

Antero de Quental - Idílio



Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas,
E galgamos de um fôlego as colinas
Do rocio da noite inda orvalhadas;

Ou vendo o mar, das ermas cumeadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longe no horizonte amontoadas;

Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz no teu olhar flutua;
Sinto tremer-te a mão, e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações
E a poesia das cousas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

Antero de Quental - Oceano Nox



Foto: Mar em dia de tempestade biscoitos, Ilha da Terceira, de Ideias e Ideias



Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

Antero de Quental - Despondency



Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram
Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…

Deixá-la ir a vela, que arrojaram
Os tufões pelo mar, na escuridade,
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do Sul se levantaram…

Deixá-la ir, a alma lastimosa,
Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa…

Deixá-la ir, a nota desprendida
Dum canto extremo… e a última esperança…
E a vida… e o amor… deixá-la ir, a vida!



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

Antero de Quental - Divina Comédia



Imagem: Paramours and flatterers, retirada da net.



Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»




Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842—1891)

Antero de Quental - O Palácio da Ventura



Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842—1891)

Antero de Quental - Palavras dum Certo Morto



Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto…

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só… do resto não me importo…

Que vivi sei-o eu bem… mas foi um dia,
Um dia só – no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto… ai! adoraram-me,

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém!– logo em seguida
Disseram que era um Deus… e amortalharam-me!



Antero de Quental (Poeta português. Ponta Delgada, 1842-1891)

1 Ano



Foto: The Popping Cork B+W by davespilbrow


No passado dia 25 de Junho, o Palavras que me tocam... completou um ano. O meu bebé está a ficar grandinho!! :) :) Devido à minha ausência, celebro hoje este aniversário, agradecendo a todos os amigos, conhecidos e desconhecidos que visitam este blog. Espero continuar a partilhar convosco o meu amor pela poesia durante muito...muito...tempo.

Um abraço grande.

Susana B.