António Lobo Antunes - Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada
António Lobo Antunes (Escritor e Poeta português, 1942- )
5 comentários:
sim, quinze anos tinha
no seu corpo em brasa
a tal senhorinha
que não tinha casa.
tinha tranças d’oiro
e a pele alvacenta
tu foste o primeiro
a arrastar-lhe a asa
naquele janeiro
dos anos setenta.
ela pai não teve
sequer tinha mãe
não tinha sapatos
não tinha vestidos
não tinha ninguém.
não havia lua
não havia estrelas
e não tinha abrigo,
a casa era a rua
da pobre donzela
que não tinha amigos.
o seu corpo grácil
de pele de alabastro
jamais resvalado
não tinha cadastro
mas foi presa fácil
dum lobo esfaimado.
se um dia voltares
à estrada velha
no negrume agreste,
detém-te e descobre-te,
acende uma vela:
verás numa faia
- ou “feral cipreste”? -
a seta-coração
que a bela catraia
em aflito pranto
no tronco entalhou
nessa noite túmulo
do seu corpo espanto.
e verás, para cúmulo,
que foste o primeiro
e também o último
a dar-lhe dinheiro.
Zenite,
muito obrigada pelo teu poema. Visitei o teu blog e quis deixar lá um agradecimento, mas não encontrei nenhum meio de contacto.
De qualquer forma, quero dizer-te que gostei muito das tuas palavras. São sentidas...e nesta vida o que de melhor temos é sentir.
Amanhã publicarei as palavras que me ofereceste.
Muito obrigada.
Um abraço.
Susana B.
Grato, Susana, pelas tuas palavras. Grato, também, por teres colocado o link do Arestas de Vento no teu blogue, que gostei de visitar.
Quanto aos versinhos, deixo a seguir uma versão corrigida.
Abraço e bom fim-de-semana.
sim, quinze anos tinha
no seu corpo em brasa
a tal senhorinha
que não tinha casa.
tinha tranças d’oiro
e a pele alvacenta
tu foste o primeiro
a arrastar-lhe a asa
naquele janeiro
dos anos setenta.
ela pai não teve
sequer tinha mãe
não tinha sapatos
não tinha vestidos
não tinha ninguém
só dias sofridos.
não havia lua
não havia estrelas
e não tinha abrigo,
a casa era a rua
da pobre donzela
que não tinha amigos.
o seu corpo grácil
de pele de alabastro
jamais resvalado
não tinha cadastro
mas foi presa fácil
dum lobo esfaimado.
se um dia voltares
à estrada velha
no negrume agreste,
detém-te e descobre-te,
acende uma vela:
verás numa faia
- ou “feral cipreste”? -
a seta-coração
bem como a mensagem
que a bela catraia
em aflito pranto
no tronco entalhou
nessa noite túmulo
do seu corpo espanto.
verás, para cúmulo,
que foste o primeiro
e também o último
a dar-lhe dinheiro.
Os meus cumprimentos à autora de "Palavras que me tocam..." , extensivos a "Zenite", pela qualidade dos seus "versinhos" que teve a bondade de deixar também num blog da minha responsabilidade, noutro espaço, a propósito do mesmo poema que eu aí tinha transcrito. Procurei escolher algumas palavras a fita métrica para um tão poético comentário que me permito transcrever aqui e deixar à sua consideração:
Nem santo nem lobo
eu que me comovo
por tudo e por nada
vi uma catraia
perdida na rua
só abandonada
vestida ia nua
já mulher-da-vida
não ouvi seus ais
ignorei sua dor
também o seu cheiro
não sei se tem pais
se é filha querida
se precisa de amor
ou apenas dinheiro
segui minha vida
de tudo alheado
ignorei seu fado
não mais a lembrei
até certo dia
ao ler um poema
ao som do Bolero
eu que me comovo
por tudo e por nada
pergunto a mim mesmo
se é isto que quero
eu que me comovo
ignoro o meu povo
nem santo nem lobo
To Zé,
que palavras bonitas. Gostei muito. Muito obrigada pela oferta.
Se não te importares, publicá-las-ei no próximo domingo.
Um abraço.
Susana B.
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