Natália Correia - O nascimento do poeta
Ora foi num dia treze
que em seu bliblíco lugar de dor
minha mãe deu por completas
as letras do meu teor.
Porque para acabar o mundo
era preciso a minha mão
desse azul calafetado
caí nas facas do chão.
Machucada de nascida,
da minha sofrida região
pus-me a levantar o mapa
em ponto de exclamação.
Assim na câmara escura
de cada privada saliência
meus olhos se revelaram
negativos na ausência
Soube que o tempo é uma luva
anti-séptica que o infinito
calça para joeirar
sem contágio o nosso trigo.
Daí o amor ser o meio
do homem dividido em dois
e a pior metade é estarmos
à espera de sermos depois.
Soube que quando a amargura
nos gasta a pintura aparece
a cor que teriam os olhos
de um deus apócrifo se viesse
não refulgente ou teologal
tampouco suspensa espada
mas ocasional como vestir
uma camisa lavada
porque a vida é a ocupação
do único espaço disponível
para o possível amanhã
da nossa véspera impossível
e o sidério, adeus mistério
é um queijo de paciência
para a gulodice da terra
(e não perdi a inocência).
Soube cousas que sabê-las
foi eu ir ficando nua
como no apocalipse uma última
pedra vestida de lua
como no fim do mundo lírico
verme a recomeçá-lo
a beber estrelas e peixes
pelo seu estreito gargalo
como eu em amorosa
posição de cana erecta
a pescar no indizível
o sinónimo de poeta.
Natália Correia (Poetisa portuguesa, 1923-1993)
1 comentário:
Proclamo que é notável um erro ortográfico no segundo verso da primeira estrofe deste grandioso poema!
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