Mostrar mensagens com a etiqueta Maria do Rosário Pedreira. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Maria do Rosário Pedreira. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, janeiro 02, 2008

Maria do Rosário Pedreira - Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas



Foto: Emmanuelle Beart, autor desconhecido.



Tenho um decote pousado no vestido e não sei se voltas,
mas as palavras estão prontas sobre os lábios como
segredos imperfeitos ou gomos de água guardados para o
verão.
E, se de noite as repito em surdina, no silêncio
do quarto, antes de adormecer, é como se de repente
as aves tivessem chegado já ao sul e tu voltasses
em busca desses antigos recados levados pelo tempo:

Vamos para casa? O sol adormece nos telhados ao domingo
e há um intenso cheiro a linho derramado nas camas.
Podemos virar os sonhos do avesso, dormir dentro da tarde
e deixar que o tempo se ocupe dos gestos mais pequenos.

Vamos para casa. Deixei um livro partido ao meio no chão
do quarto, estão sozinhos na caixa os retratos antigos
do avô, havia as tuas mãos apertadas com força, aquela
música que costumávamos ouvir no inverno. E eu quero rever
as nuvens recortadas nas janelas vermelhas do crepúsculo;
e quero ir outra vez para casa. Como das outras vezes.

Assim me faço ao sono, noite após noite, desfiando a lenta
meada dos dias para descontar a espera. E, quando as crias
afastarem finalmente as asas da quilha no seu primeiro voo,
por certo estarei ainda aqui, mas poderei dizer que, pelo
menos uma ou outra vez, já mandei os recados, já da minha
boca ouvi estas palavras, voltes ou não voltes.




Maria do Rosário Pedreira (Escritora e poetisa portuguesa, 1959- )

domingo, abril 01, 2007

Maria do Rosário Pedreira - Foi sempre tão incerto o caminho até ti



Foto: Claustrophobia, de Armindo Dias



Foi sempre tão incerto o caminho até ti:
tantos meses de pedras e de espinhos, de
maus presságios, de ramos que rasgavam a
carne como forquilhas, de vozes que me
diziam que não valia a pena continuar, que
o teu olhar era já uma mentira; e o meu

coração sempre tão surdo para tudo isso,
sempre a gritar outra coisa mais alto para
que as pernas não pudessem recordar as
suas feridas, para que os pés ignorassem
as penas da viagem e avançassem todos
os dias mais um pouco, esse pouco que
era tudo para te alcançar. Foi por isso que,

ao contrário de ti, não quis dormir nessa
noite: os teus beijos ainda estavam todos
na minha boca e o desenho das tuas mãos
na minha pele. Eu sabia que adormecer

era deixar de sentir, e não queria perder os
teus gestos no meu corpo um segundo que
fosse. Então sentei-me na cama a ver-te
dormir, e sorri como nunca sorrira antes
dessa noite, sorri tanto. Mas tu falaste de
repente do meio do teu sono, estendeste o
braço na minha direcção e chamaste baixinho.
Chamaste duas vezes. Ou três. E sempre tão
baixinho. Mas nenhuma foi pelo meu nome.



Maria do Rosário Pedreira (Escritora e poetisa portuguesa, 1959- )

domingo, janeiro 28, 2007

Maria do Rosário Pedreira - Não digas ao que vens



Foto: Dois corpos, uma só alma II, de Filipe Pereira


Não digas ao que vens. Deixa-me
adivinhar pelo pó nos teus cabelos
que vento te mandou. É longe a
tua casa? Dou-te a minha: leio nos

teus olhos o cansaço do dia que te
venceu; e, no teu rosto, as sombras
contam-me o resto da viagem. Anda,

vem repousar os martírios da estrada
nas curvas do meu corpo - é um
destino sem dor e sem memória. Tens

sede? Sobra da tarde apenas uma
fatia de laranja - morde-a na minha
boca sem pedires. Não, não me digas
quem és nem ao que vens. Decido eu.



Maria do Rosário Pedreira (Escritora e poetisa portuguesa, 1959- )

Maria do Rosário Pedreira - Toca-me onde me dói



Foto: O sinal da rosa, de Filipe Pereira



Toca-me onde me dói e verás
uma flor a abrir-se lentamente
sobre a pele, a maravilha nunca
adivinhada de um mistério. Esta

é a tua vez de o desvendares -
paixão é uma palavra demasiado
antiga no meu corpo, já não sei a
última vez, a única vez. Toca-me

por isso devagar, não me lembro
da primavera que fez nascer a
doença sobre a ferida, não sinto
o recorte da cicatriz que o tempo

pousou nela. Agora chama-me ao
teu peito com as mãos, tal como a
chuva chama pelos narcisos sem

cessar, ano após ano; diz o meu
nome com os dedos a serem rios
que latejam no coração adormecido

de uma aldeia. Não adivinhes -
lá, onde me doer, vou recordar-me.



Maria do Rosário Pedreira (Escritora e poetisa portuguesa, 1959- )