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domingo, maio 13, 2007

Silvia Chueire - Lembrar



lembro-me do teu rosto
antes de morreres
para o amor.

lembro-me das chamas
crescendo nas tuas palavras,
do teu olhar a dizê-las.

os dias a serem vida,
não tempo.

lembro-me de ti,
impecável nos atos,
distante da sombra
- pura azáfama –
que agora és.



Silvia Chueire (Poeta e psiquiatra brasileira, autora do blog In The Meadow)

domingo, setembro 10, 2006

Milan Kundera - (...) deitaram-se de lado na cama.



(…) deitaram-se lado a lado na cama. Ele olhava-a. Ela estava de costas, com a cabeça enterrada no travesseiro, o queixo ligeiramente erguido e os olhos cravados no tecto, e, nessa extrema tensão do seu corpo (ela fazia-o sempre pensar na corda de um instrumento de música e ele dizia-lhe que ela tinha "a alma de uma corda"), viu de súbito, num instante só, toda a sua essência. Sim, acontecia-lhe por vezes (eram momentos miraculosos) captar de súbito, num único dos seus gestos ou dos seus movimentos, toda a história do corpo e da alma dela. Eram instantes de clarividência absoluta, mas também de emoção absoluta; porque esta mulher amara-o quando ela nada era ainda, estivera pronta a sacrificar tudo por ele, compreendia às cegas os seus pensamentos, de tal maneira que ele podia falar-lhe de Armstrong ou de Stravinski, de insignificâncias ou de coisas sérias, enquanto ela continuava a ser sempre para ele o mais próximo de todos os seres humanos…

Depois, imaginou que este corpo adorável, que este rosto adorável, estavam mortos, e disse a si próprio que não poderia sobreviver-lhe um dia que fosse. Sabia que era capaz de a proteger até ao último suspiro, que era capaz de dar a vida por ela.

Mas esta sensação de amor asfixiante não passava de um fraco clarão efémero, porque o espírito dele estava totalmente ocupado pela angústia e pelo medo. Estava deitado ao lado de Kamila, e sabia que a amava infinitamente, mas estava mentalmente ausente como se a acariciasse a uma distância incomensurável, de várias centenas de quilómetros."


in A Valsa do Adeus, de Milan Kundera (Escritor Checo, 1929- ) - Retirado daqui



Foto: Dispair, by Fjärl

Toranja - Quebrámos os Dois



Era eu a convencer-te que gostas de mim
e tu a convenceres-te que não é bem assim...
Era eu a mostrar-te o meu lado mais puro
e tu a argumentares os teus inevitáveis

Eras tu a dançares em pleno dia
e eu encostado como quem não vê
Eras tu a falar para esconder a saudade
e eu a esconder-me do que não se dizia

... afinal quebramos os dois...

Desviando os olhos por sentir a verdade
juravas a certeza da mentira
mas sem queimar demais
sem querer extinguir o que já se sabia

Eu fugia do toque como do cheiro
por saber que era o fim da roupa vestida
que inventara no meio do escuro onde estava
por ver o desespero na cor que trazias...

... afinal quebramos os dois...

Era eu a despir-te do que era pequeno
e tu a puxares-me para um lado mais perto
onde contamos histórias que nos atam
ao silêncio dos lábios que nos mata...!

Eras tu a ficar por não saberes partir...
e eu a rezar para que desaparecesses...
Era eu a rezar para que ficasses...
e tu a ficares enquanto saías.
... não nos tocamos enquanto saías.
não nos tocamos enquanto saímos.
não nos tocamos e vamos fugindo
porque quebramos como crianças

...afinal quebramos os dois...

...e é quase pecado o que se deixa...
...quase pecado o que se ignora...




Toranja (Grupo musical português)


Quadro de Sebastião Xant

Mário Sá Carneiro - Como eu não possuo




Olho em volta de mim. Todos possuem -
Um afecto, um sorriso ou um abraço.

Só para mim as ânsias se diluem
E não possuo mesmo quando enlaço.


Roça por mim, em longe, a teoria
Dos espasmos golfados ruivamente;
São êxtases da cor que eu fremiria,
Mas a minh'alma pára e não os sente!


Quero sentir. Não sei... perco-me todo...
Não posso afeiçoar-me nem ser eu:
Falta-me egoísmo para ascender ao céu,
Falta-me unção p'ra me afundar no lodo.


Não sou amigo de ninguém. P'ra o ser
Forçoso me era antes possuir
Quem eu estimasse - ou homem ou mulher,
E eu não logro nunca possuir!...


Castrado de alma e sem saber fixar-me,
Tarde a tarde na minha dor me afundo...
Serei um emigrado doutro mundo
Que nem na minha dor posso encontrar-me?...


Como eu desejo a que ali vai na rua,
Tão ágil, tão agreste, tão de amor...
Como eu quisera emaranhá-la nua,
Bebê-la em espasmos de harmonia e cor!...


Desejo errado... Se a tivera um dia,
Toda sem véus, a carne estilizada
Sob o meu corpo arfando transbordada,
Nem mesmo assim - ó ânsia! - eu a teria...


Eu vibraria só agonizante
Sobre o seu corpo de êxtases doirados,
Se fosse aqueles seios transtornados,
Se fosse aquele sexo aglutinante...


De embate ao meu amor todo me ruo,
E vejo-me em destroço até vencendo:
É que eu teria só, sentindo e sendo
Aquilo que estrebucho e não possuo.




Paris, Maio de 1913

Mário Sá Carneiro
(Poeta português, 1890-1916)



Foto: Linear anxiety, by amsabri